A juventude não foi feita para o prazer, mas sim para o heroísmo!

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Considerações sobre cultura católica: em que consiste, como se adquire, suas deformações


Plinio Corrêa de Oliveira
 
 
 
 
 
Cultura é essencialmente conhecimento e amor da Verdade, do Bem e da Beleza. Mas por isto mesmo é também ódio ao erro, ao mal, ao feio. É, pois, impossível fazer obra cultural séria que não tenha um e outro aspecto. A Igreja ensina a Verdade, o Bem, e forma as almas para o Belo. Por isto mesmo combate implacavelmente o erro e o mal, e é incompatível com o feio. Neste quadro de Berruguete (séc. XV), São Domingos de Gusmão manda lançar às chamas os livros católicos e os infectados da heresia albigense. Os primeiros são poupados pelo fogo e os outros são extinguidos pelas mesmas chamas.
Atendendo ao pedido constante de carta que publicamos em outro local (*), reroduzimos a seguir a conferência que nosso colaborador Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira proferiu a 13 de novembro do ano findo no Seminário Central de S. Leopoldo, Rio Grande do Sul, a convite do Revmo. Pe. Leonardo Fritzen, S. J., Reitor daquela Casa: 
Agradeço emocionado, a saudação amável do ilustre Reitor desta Casa, e o acolhimento afetuoso que de vós estou recebendo. 
A atmosfera que aqui se respira evoca anos saudosos e fecundos de minha vida, os tempos já distantes em que cursava o Colégio S. Luiz, de São Paulo. Passando quase todo o meu curso secundário em convívio com a Companhia de Jesus, meu espírito se voltou desde cedo para a consideração dos valores espirituais que Santo Inácio legou à sua milícia, minhas primeiras lutas espirituais foram travadas sob a influência dos Exercícios, abriu-se na Congregação a minha alma para a piedade mariana, entusiasmou-se meu coração no estudo do que pela Igreja fizeram os Santos que na Companhia floresceram, e alentou-se minha vontade na devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que Jesuítas eminentes haviam propagado por todo o Brasil. Posso dizer com sinceridade que quanto mais vivo, tanto mais se radica em mim a veneração a todos estes valores. Compreendereis pois facilmente, quanto me sinto tocado num ambiente como este, em que me é fácil discernir nos mestres, nos alunos, por assim dizer no ar e nos próprios muros aquela influência formativa que modelou em seus albores e em suas camadas mais internas o meu próprio espírito. 
Ademais, estou aqui num Seminário, e considerando-vos, a vós, jovens, que por vocação divina ireis servir a Santa Igreja nas fileiras sagradas do Clero, chamados alguns para a vida religiosa em Institutos beneméritos, e a grande maioria para as nobres lides do Clero secular, não posso deixar de me sentir empolgado. Como bem acentuou o Revmo. Pe. Reitor, em vossas fileiras está representado quase todo o Brasil, desde as margens do Amazonas até as cochilhas gloriosas deste Rio Grande, passando pelo indômito Pernambuco, terra de meus maiores, e pelo São Paulo invicto, minha terra natal. Deixastes lares, esperanças terrenas, prazeres, riquezas talvez, para vos preparardes para o serviço de Deus. Vosso sacrifício é grande por certo, mas vossa missão ainda maior. Nosso país vive em circunstâncias que colocam nas mãos do Clero - muito mais nitidamente do que em outras épocas - não só o destino eterno de nossos contemporâneos, mas de certo modo o de muitas e muitas gerações vindouras, e ipso facto a grandeza da pátria brasileira nos séculos que estão por vir. Não é preciso dizer mais, para vos manifestar com quanta simpatia vos vejo aqui reunidos, ávidos de ouvir uma palavra para a qual a generosidade do Pe. Reitor suscitou uma expectativa imerecida. Acabo de me referir à grandeza de vossa vocação, excelsa em todos os tempos mas tão particularmente grande nos dias que correm. Isto me conduz naturalmente ao tema que foi proposto para minha palestra, a cultura católica. Comecemos pois a considerá-lo. 
*      *      * 
O que é a cultura? A esta pergunta, têm sido dadas respostas bem diversas, inspiradas umas na filologia, outras em sistemas filosóficos ou sociais de toda sorte. Tal é o cipoal de contradições que em torno deste vocábulo, e outro conexo, que é "civilização", se estabeleceu, que congressos internacionais de sábios e professores se têm especialmente reunido para lhes definir o conteúdo. Como sói acontecer, de tanta discussão não nasceu a luz... 
Não seria possível na exigüidade desta palestra enunciar as teses e os argumentos das diversas correntes, afirmar por sua vez nossa tese e justificá-la, para tratar depois da cultura católica. Entretanto, podemos considerar seriamente o assunto, tomando a palavra "cultura" nos mil significados de que ela se reveste na linguagem de tantos povos, classes sociais e escolas de pensamento, e começando por mostrar que em todas estas acepções a "cultura" contém sempre um elemento basilar invariável, isto é, o aprimoramento do espírito humano
No âmago da noção de aprimoramento, está a idéia de que todo homem tem em seu espírito qualidades susceptíveis de desenvolvimento, e defeitos passíveis de repressão. O aprimoramento tem pois dois aspectos: um, positivo, em que significa crescimento do que é bom, e outro negativo, ou seja, a poda do que é mau
Muitos modos de pensar e de sentir correntes, a respeito da cultura, se explicam à vista deste princípio. Assim, não temos dúvida em reconhecer o caráter de instituição cultural a uma universidade, a uma escola de música ou teatro, ou mesmo a uma sociedade destinada ao fomento do jogo de xadrez ou da filatelia. É que estas entidades ou grupos sociais têm como objetivo direto o aprimoramento do espírito, ou pelo menos visam fins que de si aprimoram o espírito. Entretanto, podemos conceber uma universidade, ou outra instituição cultural, que trabalhe virtualmente contra a cultura, o que se dá quando, pelo efeito de erros de qualquer ordem, sua ação deforma os espíritos. Poder-se-ia por exemplo fazer esta afirmação a propósito de certas escolas que, levadas de um entusiasmo exagerado pela técnica, incutem em seus alunos o desprezo por tudo quanto é filosófico, ou artístico. Um espírito que adora a mecânica como valor supremo e faz dela o único firmamento da alma, nega toda certeza que não tenha a evidência das experiências de laboratório e rejeita desdenhosamente todo o belo, é sem dúvida um espírito deformado. Como deformado seria o espírito que, movido por um apetite filosófico imoderado, negasse qualquer valor à musica, à arte, à poesia, ou mesmo a atividades mais modestas mas que também exigem inteligência e cultura, como a mecânica. E de universidades que plasmassem segundo alguma destas orientações falsas os seus alunos, diríamos que exercem uma ação anti-cultural, ou propagam uma falsa cultura.
Na acepção corrente, reconhece-se que jogar esgrima é um exercício de certo valor cultural, porque supõe qualidades de destreza física, vivacidade de alma, elegância. Mas o senso comum se mostra intenso a reconhecer caráter cultural ao box, que tem em si algo de aviltante para o espírito, pelo fato de ter por alvo de golpes maciços e brutais a face do homem. Em todas estas acepções, e em tantas outras ainda, a linguagem corrente inclui na noção de cultura a idéia de aprimoramento da alma.
 
Cultura e instrução 
À primeira vista é menos clara, no conceito geral, a distinção entre instrução e cultura. Mas, bem analisadas as coisas, vê-se que tal distinção existe, e repousa sobre um fundamento sólido. 
Diz-se de uma pessoa que leu muito, que é muito culta, pelo menos comparativamente a outra que lê pouco. E, entre duas pessoas que leram muito, a que mais leu presume-se ser a mais culta. Como de si a instrução aprimora o espírito, é natural que, salvo razões em contrário, se repute mais culto quem for mais lido. O perigo de um erro neste assunto nasce do fato de que muitas pessoas simplificam inadvertidamente as noções e chegam a considerar a cultura como mera resultante da quantidade de livros lidos. Erro palmar, pois a leitura é proveitosa, não tanto em função da quantidade como da qualidade dos livros lidos, e principalmente em função da qualidade de quem lê, e do modo por que lê
Em outros termos, em tese a leitura pode fazer homens instruídos: tomamos aqui a palavra instrução no sentido de mera informação. Mas uma pessoa muito lida, muito instruída, ou seja, informada de muitos fatos ou noções de interesse científico, histórico ou artístico, pode ser bem menos culta do que outra de cabedal informativo menor.
 
O rato de biblioteca (Der Bücherwurm), pelo pintor alemão Carl Spitzweg (1808-1885)
É que a instrução só aprimora o espírito em toda a medida do possível, quando seguida de uma assimilação profunda, resultante de acurada reflexão. E por isto quem leu pouco, mas assimilou muito, é mais culto do que quem leu muito e assimilou pouco. Em via de regra, por exemplo, um guia de museu é muito instruído dos objetos que deve mostrar aos visitantes. Mas não raras vezes ele é pouco culto: limita-se a decorar, e não procura assimilar. 
 
Como se adquire a cultura 
Tudo quanto o homem apreende com os sentidos ou a inteligência, exerce um efeito sobre as potências de sua alma. Deste efeito, uma pessoa pode libertar-se mais, ou menos, ou até inteiramente, conforme o caso, mas em si cada apreensão tende a exercer sobre ela um efeito. 
Como já dissemos, a ação cultural consiste positivamente em acentuar todos os efeitos aprimoradores, e negativamente em frear os outros. 
Bem entendido, a reflexão é o primeiro dos meios desta ação positiva. Mais, muito e muito mais do que um rato de biblioteca, um repositório vivo de fatos e datas, nomes e textos, o homem de cultura deve ser um pensador. E para o pensador o livro principal é a realidade que ele tem diante dos olhos; o autor mais consultado, ele próprio, e os demais autores e livros, elementos preciosos mas nitidamente subsidiários
Contudo a mera reflexão não basta. O homem não é puro espírito. Por uma afinidade que não é apenas convencional, existe um nexo entre as realidades superiores que ele considera com a inteligência, e as cores, os sons, as formas, os perfumes que atinge pelos sentidos. O esforço cultural só é completo quando o homem embebe todo o seu ser, por estas vias sensíveis, dos valores que sua inteligência considerou. O canto, a poesia, a arte têm exatamente este fim. E é por um acurado e superior convívio com o belo (retamente entendida a palavra, é claro) que a alma se embebe inteiramente da verdade e do bem. 
Juízo final (Fra Angelico)
Cultura Católica 
Para que uma cultura esteja alicerçada sobre bases verdadeiras, é pois necessário que contenha noções exatas sobre a perfeição do homem - quer nas potências da alma, quer nas relações desta com o corpo - sobre os meios pelos quais ele deve alcançar esta perfeição, os obstáculos que encontra, etc. 
É bem de ver que a cultura, assim conceituada, deve ser toda ela nutrida pela seiva doutrinária da Religião verdadeira. Pois é à Religião que compete ensinar-nos no que consiste a perfeição do homem, a via para alcançá-la, e os obstáculos que se lhe opõem. E Nosso Senhor Jesus Cristo, personificação inefável de toda a perfeição, é assim a personificação, o modelo sublime, o foco, a seiva, a vida, a glória, a norma, e o encanto da verdadeira cultura. O que equivale a dizer que a cultura verdadeira só pode ser baseada na verdadeira Religião, e que só da atmosfera espiritual criada pelo convívio de almas profundamente católicas pode nascer a cultura perfeita, como o orvalho se forma naturalmente da atmosfera sadia e viva da madrugada. 
Isto se demonstra também à luz de outras considerações. 
Dizíamos pouco antes que tudo quanto o homem vê com os olhos do corpo ou os da alma é susceptível de o influenciar. Todas as maravilhas naturais de que Deus encheu o universo são feitas para que ao considerá-las a alma humana se aprimore. Mas as realidades que transcendem os sentidos são intrinsecamente mais admiráveis do que as sensíveis. E se a contemplação de uma flor, uma estrela ou uma gota de água pode aprimorar o homem, quanto mais o pode fazer a contemplação do que a Igreja nos ensina sobre Deus, seus Anjos, seus Santos, o Paraíso, a graça, a eternidade, a Providência, o inferno, o mal, o demônio, e tantas outras verdades
A imagem do Céu na terra é a Santa Igreja, a obra prima de Deus. A consideração da Igreja, seus dogmas, seus Sacramentos, suas instituições, é por isto mesmo um supremo elemento de aprimoramento humano. Um homem que, nascido nos subterrâneos de alguma exploração de minério, nunca tivesse visto a luz do dia, perderia com isto um elemento de enriquecimento cultural precioso, e quiçá capital. Muito mais perde, culturalmente, quem não conhece a Igreja, da qual o sol não é senão uma figura pálida no sentido mais literal deste adjetivo. 
Entretanto há mais. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo. Circula nela a graça, que nos vem da Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pela graça, o homem é elevado à participação da própria vida da Santíssima Trindade. Basta dizer isto, para afirmar o incomparável elemento de cultura que a Igreja nos dá abrindo-nos as portas da ordem sobrenatural
O mais alto ideal de cultura está pois contido na Santa Igreja de Deus.
 
Interior da mesquita de Córdoba, hoje Catedral católica
Culturas não católicas 
Pode o homem elaborar fora da Igreja uma cultura verdadeira? Distingo. 
Ninguém poderia afirmar que os egípcios, os gregos, os chineses não foram possuidores de autênticos e admiráveis elementos de cultura. Entretanto, é inegável que a cristianização do mundo clássico veio propiciar a este valores culturais muito mais altos
S. Tomás ensina que a inteligência humana pode, de per si, conhecer os princípios da lei moral, mas que em conseqüência do pecado original os homens facilmente se desviam do conhecimento desta lei, pelo que se tornou necessário que Deus revelasse os Dez Mandamentos. Ademais, sem o auxílio da graça ninguém pode praticar duravelmente na sua íntegra a Lei. E se bem que a graça seja dada a todos os homens, sabemos que os povos católicos, com a superabundância de graças que recebem na Igreja, são os que conseguem praticar todos os Mandamentos. 
De outro lado, uma sociedade humana só está em seu estado normal quando a generalidade de seus membros observa a lei natural. E daí se segue que, se bem que povos não católicos possam ter produções culturais admiráveis, são sempre gravemente falhos em alguns pontos capitais, o que tira à sua cultura a integridade e plena regularidade, pressuposto necessário de tudo quanto é exímio ou mesmo simplesmente normal. 
A cultura verdadeira e perfeita só na Igreja se encontra
Sainte Chapelle (andar superior), em Paris, mandada construir por São Luís IX, Rei de França, para abrigar a Coroa de espinhos posta na sagrada Cabeça de Nosso Senhor, durante a Paixão
Ireis, meus caros Seminaristas, plasmar para a Religião verdadeira e pois para a plenitude da cultura, este nosso povo jovem, de imensos recursos inaproveitados, a quem tocará a liderança do mundo futuro, por alguns séculos certamente. Estes séculos, esta influência mundial serão de Cristo, Senhor Nosso, se fordes Padres segundo o Coração de Jesus, inteiramente formados na escola de Maria
Tudo quanto vos acabo de dizer redunda em afirmar quanto reverencio vossa esplêndida missão, o muito que de vós espera meu coração de católico, o muito que vos amo por terdes deixado tudo para seguir esta gloriosa vocação
Ajude-vos Maria Santíssima a implantar em nossa pátria sua realeza recentemente proclamada pelo Sumo Pontífice: ut adveniat regnum Christi, adveniat regnum Mariae
Melhores votos não vos poderia apresentar como católico, como brasileiro, como amigo! 

(*) A respeito da conferência do Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira que publicamos neste número, recebeu esta folha a seguinte carta altamente expressiva, assinada por 56 alunos do Seminário Central de S. Leopoldo: 
"Sr. Redator 
Os infra-assinados vimos pedir a V. S. o favor de inserir oportunamente nas colunas de CATOLICISMO a notável conferência, que a todos nos empolgou, do Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, proferida no salão nobre do Seminário Central de S. Leopoldo, aos 13 de novembro deste ano. Esse impressionante trabalho versou sobre a Cultura no seu sentido mais vasto e profundo, e nele se espelhou, uma vez mais, o seguro e penetrante saber social, histórico, filosófico e teológico do grande colaborador de CATOLICISMO, que nos honrou com sua visita e nos edificou com sua palavra. Muito gratos."